A guerra na Ucrânia — “Psicótico bypass conservador na Ucrânia”, por Alejandro Marcó del Pont

Seleção e tradução de Francisco Tavares

9 min de leitura

Psicótico bypass conservador na Ucrânia

 Por Alejandro Marcó del Pont

Publicado por  em 4 de Setembro de 2023 (ver aqui)

Publicação original por  (ver aqui)

 

Fonte: El Tábano Economista [imagem: Biden e Zelenski na Cimeira da NATO 2023 em Vilnius, Lituânia]

A guerra na Ucrânia é o melhor investimento na defesa dos EUA em toda a sua história (Mitt Romney)

 

O argumento estabelecido a favor da guerra na Ucrânia começou a modificar de rumo desde dezembro de 2022 com exóticas intenções de eventuais conversações de paz. Alguns alertas foram mais notórios do que outros, eu diria que os papéis do Pentágono preenchem o conceito de implausível. A cimeira da NATO na Lituânia mostrou um retrato feito pelos meios de comunicação ocidentais sobre “a solidão do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky“, toda uma manchete tendenciosamente ilustrativa, ainda mais quando este se debatia tentando dar coragem valor aos soldados caídos em combate. Uma negociação distorcida e sombria, de toma lá dá cá, dentro de uma perturbada distribuição de papéis onde os mortos são colocados pela Ucrânia em troca de financiamento e abastecimento à guerra. Quanto vale cada morto? Dependendo da conta, entre 100.000 e 150.000 dólares.

Alguns dias depois, Stian Jenssen, chefe de gabinete e homem de confiança de Jens Stoltenberg (atual Secretário-Geral da organização do Tratado do Atlântico Norte, NATO), assegurava num evento na Noruega que uma solução para pôr fim aos 18 meses de guerra poderia passar por “a Ucrânia ceder território e receber em troca a entrada na NATO“, algo assim como um instantâneo da atualidade.

É verdade que os objetivos da crónica Ocidental mudaram, o que surpreende não é a sua reviravolta, mas que discussões que antes eram ocultadas ao público sejam expostas sem diplomacia, como uma simples equação de custo-benefício, a qual, como argumento, não deixa de ser espantosamente inegável. O Center for European Policy Analysis (CEPA) e o senador por Utah, e ex-candidato republicano à presidência americana, Mitt Romney, afirmaram, em diferentes momentos, que a quantia gasta pelos Estados Unidos para financiar o regime de Kiev, desde uma perspectiva de rentabilidade, com aproximadamente 5,6% de todo o orçamento de defesa do país, é o melhor investimento em defesa dos EUA em toda a sua história.

O senador ampliou a lógica de seu raciocínio detalhando alguns pontos que são o pensamento de grande parte do establishment político–militar do seu país. A guerra não é travada perto da fronteira americana, ocorre a 9.156 quilómetros de distância, em outro continente. Mortos, feridos, refugiados, cidades e vilas devastadas, não são americanos. No total, a administração Biden recebeu a aprovação do Congresso para 40.000 milhões de dólares em ajuda à Ucrânia em 2022 e solicitou uma ampliação de mais 37.700 milhões de dólares até 2023 com um orçamento total de defesa de 860.000 milhões.

Estas somas são insignificantes quando comparadas com um orçamento total de defesa dos Estados Unidos, cerca de 715.000 milhões de dólares para 2022. A assistência representa 5,6% dos seus gastos totais com defesa. A Rússia é o principal adversário dos Estados Unidos, um rival de primeira linha, não muito longe da China, o seu principal rival estratégico. Em termos frios e geopolíticos, de acordo com os neoconservadores, essa guerra oferece uma excelente oportunidade para os Estados Unidos corroerem e degradarem a capacidade de defesa convencional da Rússia, sem tropas no terreno e com pouco risco para as vidas americanas.

As forças armadas ucranianas já mataram ou feriram mais de 100.000 soldados russos, metade de sua força de combate original. Perdas confirmadas de veículos blindados, incluindo milhares de tanques, peças de artilharia, aviões e helicópteros e algum navio de guerra. O gasto dos EUA de 5,6% do seu orçamento de defesa para destruir uma parte da capacidade militar convencional da Rússia parece um investimento absolutamente incrível. Embora os dados não sejam totalmente precisos, o raciocínio ainda é válido.

Se dividirmos o orçamento de defesa dos Estados Unidos com base nas ameaças que enfrenta, talvez devesse dedicar à Rússia uma despesa da ordem de 100.000 a 150.000 milhões de dólares. É razoável que os militares dos EUA desejem que a Rússia continue a enviar forças militares para que a Ucrânia as destrua. Enquanto isso, substituir o equipamento destruído e acompanhar a nova corrida armamentista que agora desencadeou com o Ocidente certamente acabará levando a economia russa à falência; especialmente uma economia sujeita a sanções ocidentais agressivas.

Nenhuma destas reflexões anteriores aconteceu, as munições e suprimentos da NATO entraram em colapso, o governo de Putin está cada vez mais firme, a ofensiva ucraniana é uma ironia que começa a manifestar-se numa série de dados desagradáveis para o Ocidente. Os mortos ucranianos são 400.000 numa população de tinha 43,8 milhões de pessoas e que hoje não chega a 25 milhões. Se continuar assim, ao finalizar a guerra será um estado falido, onde faltarão braços para a sua reconstrução, financiamento para transformá-lo e atrativo para investir. Do lado americano, eles esqueceram um detalhe não menor, as primárias em 2024.

O apoio à guerra da Ucrânia pelo público estado-unidense caiu drasticamente. A maioria dos americanos opõe-se a que o Congresso autorize fundos adicionais para apoiar essa nação na sua guerra com a Rússia, de acordo com uma nova pesquisa da CNN, realizada em 4 de agosto. Em comparação, outra sondagem, realizada nos primeiros dias da invasão russa, no final de fevereiro de 2022, descobriu que 62% achavam que os Estados Unidos deveriam ter feito mais. Na atual sondagem, 55% dizem que o Congresso dos EUA não deve autorizar financiamento adicional para apoiar a Ucrânia, enquanto 51% dizem que os EUA já fizeram o suficiente para ajudar a Ucrânia.

Um exemplo do futuro foi o debate em Milwaukee dos candidatos republicanos, ao qual Trump, o candidato com maior intenção de votos, não se apresentou. A ideia que pairava nos media tinha a ver com as questões do debate sobre a Ucrânia e que atitude tomariam os candidatos em relação ao apoio dos Estados Unidos. Alguns pediram a eliminação ou redução da ajuda dos EUA, enquanto outros falaram fortemente a favor de ampliá-la. O certo é que um panorama com estas características não é bom nem para a Europa nem para a Ucrânia. Menos ainda para os democratas, cujas primárias podem ser ligadas aos altos e baixos de uma guerra.

De acordo com o Financial Times, o financiamento da União Europeia para sustentar a Ucrânia também está em apuros por divergências entre os Estados-Membros, com preocupações sobre os orçamentos nacionais com custos crescentes ameaçando o fluxo de apoio financeiro a Kiev. Este diferendo prepara o cenário para o que se espera ser uma das negociações da UE mais tensas no que resta deste ano.

Em junho, a Comissão Europeia estabeleceu um complemento de 66.000 milhões de euros para o orçamento 2021-2027, que foi financiado pelos Estados-Membros. Bruxelas propôs separadamente 20.000 milhões de euros para o fornecimento de armas para a Ucrânia. Ou seja, o pedido é de um pacote de 86.600 milhões, onde se dediquem 19.000 milhões de euros para cobrir custos de juros inesperadamente altos sobre o endividamento conjunto da UE, cerca de 2.000 milhões de euros para aumentos de custos administrativos, incluindo aumentos salariais para os funcionários, 15.000 milhões de euros para despesas relacionadas com o aumento da migração e o financiamento para países externos, e 10.000 milhões de euros para iniciativas.

Todos queremos ajudar a Ucrânia, não há relutância em fazer o que nos é pedido, ou mesmo em fazer mais, se necessário“, disse um alto diplomata da UE. Frase estranha. Como se o problema do financiamento fosse pouco, o polémico apresentador americano Tucker Carlson viajou a Budapeste para entrevistar o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, para o seu programa Tucker on X. A guerra na Ucrânia foi um dos principais temas da entrevista de meia hora. Uma das perguntas foi sobre a sua reação à destruição do gasoduto Nord Stream: “nós, húngaros, deixámos imediatamente claro que existe outro gasoduto, não o Nord Stream, mas o South Stream, através do qual o gás flui da Rússia ao longo do corredor Sul: Turquia, Bulgária, Sérvia, Hungria.

Juntamente com o primeiro-Ministro da Sérvia, deixámos muito claro que se alguém quiser fazer com o corredor sul o mesmo que foi feito com o corredor norte, vamos considerá-lo um casus belli, um ataque terrorista, e obrigaremos a responder imediatamente”. O primeiro-ministro húngaro afirmou que a oportunidade de incluir a Ucrânia na NATO já se perdeu: “esta janela de oportunidade já foi fechada. Não podemos fazer isto. Não podemos dar-nos ao luxo de ter uma fronteira tão longa entre a Rússia e a Ucrânia sob o controle da NATO. Isso significará uma ameaça internacional para todos nós, inclusive para Washington

Sob esta ameaça pouco velada estão a Ucrânia e as suas circunstâncias que se preparam para o novo exercício financeiro. O Gabinete de Ministros deve apresentar o projeto de orçamento do Estado para 2024 ao seu Parlamento até 15 de setembro. Isso sabendo que, há quase dois anos, os doadores ocidentais financiam o seu orçamento, enquanto o país gasta todos os impostos arrecadados em necessidades militares.

De acordo com o jornal ucraniano RCB, a necessidade mensal da Ucrânia de empréstimos externos é de 3.000 a 4.000 milhões de dólares. Este montante cobre todas as despesas não relacionadas com a segurança e a defesa, principalmente as despesas sociais como pensões, ajudas, subsídios, etc. A segunda parte do orçamento, que ascende aproximadamente a 1,6 mil milhões de hrivnas (US dólares 43.000 M), destina-se a necessidades de defesa. O tesouro recebe esses fundos na forma de impostos, direitos aduaneiros e empréstimos internos.

Em poucas palavras, a Ucrânia precisa de cerca de 100.000 milhões de dólares para funcionar e lutar, mas como alguns republicanos entenderam rapidamente, o início das campanhas presidenciais nos Estados Unidos é a oportunidade de criticar Biden por gastos excessivos em apoio à Ucrânia. Os europeus, por seu lado, os mais castigados desta guerra, têm graves problemas sociais e orçamentais devido à crise energética, à desindustrialização e à queda do produto.

Perseguido para obter resultados na contraofensiva, com pouco pessoal e armamentos, a Ucrânia tem que suportar outro tipo de condicionamentos, não já das disputas internas europeias e da corrida presidencial americana, mas do FMI e dos parceiros europeus pelos negócios futuros. A Ucrânia foi classificada como um dos países mais corruptos do mundo e, para poder fazer negócios com gás, terras e privatizações, os Estados Unidos impuseram uma condição informal para fornecer dinheiro: deve preparar um projeto de lei para fortalecer a independência institucional e a eficiência da Procuradoria especializada Anticorrupção (SAP). O projeto de lei sobre SAP deve ser apresentado até 15 de setembro, com a maior independência possível.

O interesse pelo tema anticorrupção no exterior não é casual. O Ocidente, que fornece à Ucrânia grandes pacotes de ajuda para necessidades humanitárias e militares, quer ter certeza de que esses fundos serão usados para os fins a que se destinam. “Em conversas privadas, os nossos parceiros dizem brincando que os ucranianos não roubaram um único dólar dos contribuintes americanos. No Ocidente, há dúvidas sobre as nossas aquisições estatais e projetos de recuperação”. A administração virá da BlackRock.

Zelensky aceitou o desafio e começou a preparar a Ucrânia para congelar o conflito, uma das alternativas consideradas. O presidente disse que considera possível “conseguir a desmilitarização da Rússia” na Crimeia por meios políticos. Ou seja, vamos esquecer pouco a pouco a recuperação da Crimeia pela força militar e, é claro, esquecer a promessa de Zelensky de fevereiro: “neste verão vou alimentar os peixes no cais da Crimeia”. A ideia de que o conflito seja “congelado”, e parte da Ucrânia permaneça um Estado separado, seria exatamente a mesma situação que pode ser observada entre Israel e Palestina.

A guerra da Ucrânia é o culminar de um projeto de 30 anos do movimento neoconservador americano. A administração Biden está repleta dos mesmos neoconservadores que defenderam as guerras como uma opção dos EUA na Sérvia (1999), Afeganistão (2001), Iraque (2003), Síria (2011) e Líbia (2011) e que tanto fizeram para provocar a invasão da Ucrânia por parte da Rússia. Ao longo da sua história, o movimento produziu desastres absolutos e, no entanto, Biden encheu a sua equipa de neoconservadores. Consequentemente, o presidente americano está a levar a Ucrânia, os EUA e a União Europeia a um novo desastre geopolítico. Se a Europa é minimamente perspicaz, deveria afastar-se desses desastres da política externa estado-unidense.

Pode-se entender que o Instituto para o Estudo da Guerra, um think-tank neoconservador liderado por Kimberley Allen Kagan (e apoiado por uma série de empreiteiros de defesa como General Dynamics e Raytheon) marido de Victoria Nuland, a subsecretária de Estado para os Assuntos Políticos dos EUA, joga o negócio da guerra. Quando em 2013 eclodiram na capital ucraniana os protestos contra o governo, a corrupção e a precariedade, os EUA entraram em jogo a favor da oposição. Vários integrantes da administração democrata do presidente Barack Obama e o vice-presidente Joe Biden visitaram na praça central Maidan os manifestantes onde Victoria Nuland distribuía sanduiches contribuindo para o golpe contra o presidente pró-russo Viktor Yanukovich, que acabou por fugir do país, e deixando numa conversa telefónica a mítica frase de Nuland “Que se f… a UE!

A lógica neoconservadora baseia-se numa premissa falsa: que a superioridade militar, financeira, tecnológica e económica dos Estados Unidos permite a esse país impor condições a qualquer região do mundo. Enquanto o seu marido escreve teoria sobre o mundo unipolar, a sua esposa encarrega-se, seja desde a presidência de George W Bush filho como embaixadora dos Estados Unidos na NATO, desde a Secretaria de Estado adjunta para os Assuntos Europeus e Euroasiáticos de 2013 a 2017 com Barack Obama, até à Subsecretaria de Estado para os Assuntos Políticos na atualidade, de promover as suas hipóteses.

O dilema atual é que, embora até agora não se tenham saído nada mal para a Subsecretaria nem para os neoconservadores em geral, tanto na expansão de sua teoria como na ocupação de cargos, poderiam perder a presidência com os Republicanos ou para continuar na competição deveriam desaparecer ou congelar momentaneamente a guerra na Ucrânia, até concentrar-se na região do indo-Pacífico. O bypass pode ser um risco imprudente ou ousado, mas será sempre para um mundo mais comprometido, arriscado e perverso.

 

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O autor: Alejandro Marcó del Pont, economista argentino e mestre em relações internacionais. É diretor executivo no blog El Tábano Economista.

 

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